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Rogério Nery Entrevista Marcelo Rech (Presidente Da Anj)

Dpois de uma trajetória de sucesso na RBS, principal grupo de comunicação no Rio Grande do Sul, o jornalista gaúcho Marcelo Rech ganhou uma missão: assumir a presidência da Associação Nacional de Jornais (ANJ).

 
Seu maior desafio na função é lutar pelos pontos de vista de um colegiado de 96 veículos de imprensa de todo o País, incluindo marcas centenárias como Estadão e Folha, numa batalha global: a concorrência das chamadas bigh techs.
 
“A atuação das big techs é altamente predatória, a começar pelo fato de que se instalam em qualquer canto do mundo com baixa geração de empregos”, diz Rech nesta entrevista.
 
Na visão do CEO da Rede Integração, Rogério Nery de Siqueira Silva, Rech é a pessoa certa na função.
 
“Marcelo está habituado ao bom combate. Como repórter, atuou em reportagens investigativas e em coberturas de guerra, como as Guerras no Golfo e Bálcãs e conflitos na África e América Latina. Tenho certeza de que a ANJ tem muito a ganhar com sua capacidade e seu conhecimento nessa batalha árdua para defender o jornalismo profissional”, afirma o CEO da Rede Integração.
 
Além da formação em jornalismo, Rech cursou o Programa de Desenvolvimento de Executivos da Fundação Dom Cabral e tem cursos de especialização no Media Management Center, vinculado à Kellogg, e de estratégia de mídia na Harvard Business School.
 
Sua vida profissional foi repleta de desafios. Por cerca de 15 anos foi diretor de redação dos jornais da RBS. Recebeu o convite para ser diretor de jornalismo do Grupo RBS, que inclui a afiliada da TV Globo e tradicional Zero Hora. A evolução na RBS foi natural. Teve seu nome indicado para vice-presidente Editorial e Institucional do Grupo. Também foi presidente do Fórum Mundial de Editores (WEF) e, ainda hoje, integra o comitê executivo da Associação Mundial de News Publishers (WAN-Ifra) e de diferentes boards e conselhos.
 
Nesta entrevista por e-mail, ele explica em detalhes a visão da Associação sobre as práticas das grandes empresas de tecnologia, como Google e Facebook.
 
Segundo a ANJ, as big techs representam uma ameaça à sobrevivência do jornalismo profissional ao usar conteúdo de terceiros para gerar tráfego, mantendo as pessoas o maior tempo possível em suas plataformas e, desse modo, vender publicidade.
 
“Em seu processo de produção, as big techs geram uma poluição social, exemplificada pela desinformação e pelo discurso de ódio”, explica, sugerindo medidas para mudar o jogo.
 
Acompanhe a entrevista.
 
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1. Rogério Nery de Siqueira Silva – Em fevereiro, o Parlamento da Austrália aprovou uma lei que impõe ao Google e ao Facebook uma cobrança pela exibição, em suas plataformas digitais, de notícias produzidas por serviços jornalísticos. Outras nações ensaiam legislações similares às australianas, especialmente na Europa. Qual o significado a medida na Austrália e como avalia esse movimento global?
 
Marcelo Rech – A Austrália abriu uma estrada que precisava ser percorrida mais cedo ou mais tarde. A questão da sustentabilidade da imprensa e o duopólio representado por Google e Facebook vinham sendo discutidos em muitos fóruns, mas foi a Austrália que deu o passo concreto, baseada na convicção de que a erosão constante da imprensa afeta significativamente a democracia e a vida em comunidade. Esses valores é que guiaram a discussão na Austrália, onde, aliás, a iniciativa de forçar a uma negociação simétrica entre big techs e veículos de imprensa teve apoio unânime do parlamento e do executivo, com forte apelo também na sociedade civil.
 
2. Rogério Nery de Siqueira Silva – Durante muitos anos, as big techs foram bastante inflexíveis aos apelos dos jornais e outras mídias jornalísticas. Mas recentemente, houve uma guinada. O Facebook fechou acordo com grupo de mídia na Austrália para pagar por conteúdo, assim como Google. Foi preciso uma mudança de cenário para que as big techs revissem suas posições?
 
Marcelo Rech – As big techs foram forçadas a concordar com a negociação sobre o pagamento em razão da nova lei. É uma pena, porque elas deveriam adotar a remuneração de forma voluntária, no seu próprio interesse. A questão é relativamente simples. Em seu processo de produção, as big techs geram uma poluição social, exemplificada pela desinformação e pelo discurso de ódio. Há três maneiras de reverter isso. Primeiro, pela autorregulação das plataformas, o que vem se mostrando inexequível – veja-se a quantidade de desinformação que circula sem controle ou pela impossibilidade de atuar em aplicativos de mensagem, por exemplo. A segunda é a pior de todas, a censura, imposta por países como a China e o Irã e recentemente por atos autoritários, como na Índia. A terceira forma é a que defendemos: a remuneração da imprensa pelo trabalho de limpeza da poluição social gerada pelas bigs techs. Sem imprensa e uma negociação justa com ela, a poluição será desenfreada e as big techs sofrerão muito mais com regulações impostas por governos. O que se sabe é que, como está, não pode e não vai ficar. Melhor, portanto, que a democracia e a razoabilidade prevaleçam.
 
3. Rogério Nery de Siqueira Silva – A ANJ pediu ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) uma ampliação da investigação contra o Google no Brasil, visando à remuneração de veículos nacionais pela companhia. Por quê? O que a ANJ espera?
 
Marcelo Rech – A ação foi iniciada pelo próprio Cade para apurar o uso de extratos de notícias pelo Google sem qualquer remuneração. O problema segue, mas ficou muito pior. O discurso do Google de que gera tráfego para os veículos vem caindo por terra pela estratégia da empresa de criar seu próprio “walled garden”.  Hoje, o Google faz tudo para que o usuário não saia de seu ecossistema, e clique mais em seus anúncios, portanto. O Google já virou um veículo de comunicação que presta informação sem intermediários, por exemplo, sobre ações, resultados de futebol, tempo etc. Além disso, criou abas na própria página para que as perguntas dos usuários sejam respondidas com conteúdos de terceiros apropriados pelo Google, de forma que o usuário não precise ir a página de quem fornece a informação. É uma prática cada vez mais monopolista.
 
4. Rogério Nery de Siqueira Silva – O Google criou o “Google News Showcase” e anunciou um investimento de US$ 1 bilhão em empresas de jornalismo previsto para os próximos três anos. O Facebook também anunciou um plano similar em valores e prazos. De que modo o senhor avalia esses programas? Essas quantias são significativas ou precisariam ser ampliadas para compensar a perda da receita publicitária da mídia tradicional?
 
Marcelo Rech – Essa iniciativa é meritória, mas a meu ver é mais um gesto de relações públicas. Na prática, essa não é a remuneração da atividade jornalística, mas a compra de algumas notícias por dia de alguns veículos de comunicação para serem usadas em um produto Google. As empresas vendem essas notícias como fazem agências de notícias para terceiros. Além disso, U$ 1 bilhão em três anos pode parecer muito, mas é uma gota no oceano de receitas do Google e incapaz de reverter o deserto de notícias que se forma na esteira de Google e Facebook. Na Austrália, os valores são 30 a 50 vezes maiores para os veículos, o que é uma remuneração mais justa.
 
5. Marcelo Rech – No Brasil, Estadão, Folha, SBT, entre outros veículos, inclusive regionais, aderiram ao acordo de licenciamento de conteúdo com o Google, mas as empresas do Grupo Globo e as afiliadas ficaram de fora. Por que faltou consenso entre os principais grupos jornalísticos?
 
Marcelo Rech – Cada veículo tem sua estratégia, que depende de condições de mercado, estágio de desenvolvimento de produtos, audiência etc. Não existe uma fórmula que sirva igualmente para todos e, portanto, estão certos tanto os que fecharam os acordos quanto aqueles que não fecharam, porque agem no melhor dos interesses. Um problema é que o Google escolhe de quem comprará algumas notícias e a quem vai pagar esse valor simbólico. A imprensa local, muito relevante para o combate à desinformação e para a vida em comunidade, é discriminada, porque não tem o peso de RP que pretende o Google. Com a lei australiana, não há discriminação.
 
6. Rogério Nery de Siqueira Silva – Alguns classificam como predatória a concorrência das big techs, principalmente pela captação de publicidade. O senhor concorda com essa análise? E é possível atribuir parte da crise que se abateu sobre alguns jornais, com flagrante redução do número de páginas e de assinaturas? A desidratação da indústria de mídia jornalística tende a ser o destino, mesmo nos maiores jornais? Ou o setor tende a se consolidar entre os grandes grupos hoje existentes?
 
Marcelo Rech – A atuação das big techs é altamente predatória, a começar pelo fato de que se instalam em qualquer canto do mundo com baixa geração de empregos. Os empresários no Brasil sabem quanto custa gerar e manter um emprego e, depois, se for o caso, as despesas geradas pela Justiça do Trabalho. Um grupo regional de comunicação emprega mais gente no Brasil que algumas big techs. Além disso, uma empresa de comunicação tem toda uma regulação que não vale para as big techs.
7. Rogério Nery de Siqueira Silva – Uma ação no Supremo Tribunal Federal trata de fake news e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, disse que considera necessário classificar as big techs como empreendimentos de mídia — hoje elas são classificadas como “empresas de tecnologia”. Na sua visão, essa questão é uma das mais relevantes para mitigar a indústria de fake news que busca descredibilizar o trabalho jornalístico profissional? Quais são os desdobramentos que a ANJ espera desse processo, inclusive no Congresso?
 
Marcelo Rech – Quando se trata de ganhar um prêmio de “Veículo de Comunicação do Ano” o representante da big tech não se recusa em subir ao palco para recebê-lo, mas quando se trata de assumir o ônus legal e ético de ser veículo, elas se dizem “plataformas”. Na verdade, vendem publicidade como qualquer veículo de comunicação e assim devem ser tratados – até porque também compram e produzem conteúdo, como o caso das transmissões da Libertadores, para ficar em um exemplo mais escancarado. É preciso haver simetria legal para haver concorrência justa. Ou se regulam as big techs, ou se desregulam os meios de comunicação. É isso o que se espera do Congresso.
 
8. Rogério Nery de Siqueira Silva – Na sua visão, a pandemia de covid-19 aguçou o olhar da sociedade sobre a relevância do jornalismo profissional? Como superar essa batalha de narrativas com a indústria de fake news, muitas das vezes originadas pelos poderes instituídos? E como concorrer com as ferramentas gratuitas como os aplicativos de mensagens e redes sociais, muitas vezes livres do pacote de internet das operadoras? Na sua opinião, os esforços desses canais para combater as fake news têm sido suficientes?
 
Marcelo Rech – De forma alguma são suficientes e, na prática, inviáveis diante da torrente de fake news e da confidencialidade dos grupos de mensagem. A solução é reforçar o jornalismo profissional, que busca o acerto e o combate ao erro deliberado. Em momentos de crise, como na pandemia, o porto seguro do jornalismo é mais valorizado. É preciso estender esse papel para todos os momentos da sociedade.
 
 9. Rogério Nery de Siqueira Silva – Serviços de streaming como Netflix ou Spotify têm milhares de assinantes, inclusive no Brasil. Quando se trata de veículos jornalísticos, muitas pessoas ainda reclamam de paywall. O que falta para que os veículos jornalísticos quebrem essa cultura de “tem-que-ser-gratuito” que por vezes inibe a venda de assinaturas? E de que modo a ANJ e seus associados vêm trabalhando juntos, a despeito da concorrência entre os veículos, para criar essa noção de valor ao jornalismo profissional? Considerando o contexto, há perspectivas de crescimento?
 
Marcelo Rech – A tendência é de crescimento e de valorização do jornalismo, mas não qualquer jornalismo. Os veículos que desejam cobrar pelo conteúdo precisam oferecer um conteúdo único, diferenciado e relevante, que não pode ser encontrado gratuitamente em outro lugar. Respeitando-se as proporções, naturalmente, The New York Times multiplicou por cinco sua circulação antes restrita ao papel porque se posiciona de uma forma única. Cada veículo precisa, portanto, identificar seu posicionamento e saber extrair valor dele. 
 
10. Rogério Nery de Siqueira Silva – Uma tendência que se observa no mercado é a entrada do setor financeiro em serviços jornalísticos — podemos citar exemplos como Empiricus (Antagonista), XP (Infomoney), BTG (Exame) e C6 (Seis Minutos). De que modo esse movimento pode ser positivo para a produção jornalística? Há ameaças?
 
Marcelo Rech – Entendo como um movimento normal o fato de grupos de fora do universo da comunicação investirem em mídia, que é um negócio como outros do ponto de vista de que a equação receita menos despesa deve ser positiva. A família Graham, que era proprietária do The Washington Post, tinha outro negócio maior (a Kaplan) e nunca se viu problema nessa combinação. A linha tem de ser traçada pela ética e pela exposição de eventual conflito de interesses, quando ele aparece. A regra é simples. No jornalismo, o público não pode ser enganado. Fora disso, não é jornalismo.
 
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Entrevista feita por e-mail, respondida em 13.04.2021
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